A DOENÇA REVELA-NOS OUTRA IDENTIDADE
Poucos fatos modificam tanto a vida como saber que estamos doentes. Rotinas e escalas de valores ficam distorcidas, mas também surgem descobertas positivas.
(Clarín)
Angel Gabilondo (Filósofo, Reitor da UNIVERSIDAD AUTONOMA DE MADRID)
Nunca temos uma doença, é ela que nos possui. Costuma-se dizer que, mais do que de doenças, temos que falar de doentes, isto é, de pessoas singulares e irrepetíveis enfrentando uma dolorosa travessia pessoal.
A saúde não é simplesmente a ausência de doenças. Há quem não padeça qualquer e de modo algum é sadio. Ser são não só é mais que estar saudável, ter essa condição é mais do que estar livre de enfermidades. Porém, há enfermos e nem sempre estão visíveis numa sociedade que faz atlética ostentação de corpos esbeltos e hígidos.
A doença carrega com ela solidão. Encará-las em nós mesmos, numa desarticulação que se nos incorpora, nos toma e busca apossar-se de nós, é duro e sofrido. E tanto se agradece à companhia como se compreende que há um lugar, um ponto sombrio onde ninguém poderá acudir nem ajudar, a não ser o próprio enfermo. Ali haverá de encontrar-se com o rosto daquilo que nos prende e quer fazer de nós algo diferente.
A doença é triste e persistente, provocando certo isolamento. Para começar, do espírito. As chamadas enfermidades da alma, seu mistério, seu silêncio, carentes de ação, impedem qualquer qualificação, mas espreitam. Esta lacuna que ronda a existência de cada um de nós torna a vida realmente difícil e constitui um enigma que alcança a tantos quantos, angustiados e desolados, sentem um mal sem sentido. Olha-se ao redor buscando um pouco de ar, uma espiada, uma palavra, algo prá fazer ou desejar e que permita qualquer sã decisão. Aprender a viver com elas é duro e às vezes necessário. Combatê-las, também.
O assalto da doença modifica tudo, até a escala de valores. É então que se compreende quanto estávamos equivocados. Tanta obsessão, tanta preocupação, tanto desvelo por assuntos que agora se mostram insignificantes. A doença chega por vezes com contundência luminosa alcançando outras esferas decisivas.
Para começar, os afetos. Uma especial sensibilidade propicia tanto a indiferença com o que antes parecia decisivo, quanto os detalhes numa emergência. E se sente com um sentir renovado, desconhecido. Ou se anuncia a possibilidade de sua perda.
Nas dependências dos hospitais, clínicas, sanatórios, seres esperam muitas vezes silenciosos, outras aplastados, padecem as dentadas da enfermidade. Muitos velam por eles, com eles, lutam por eles, com eles, porém os enfermos sempre acabam socialmente ocultos, inclusive silenciados ou escamoteados. Aplacados por nossa frenética atividade, esses seres sempre humanos se desvelam por viver, inclusive quando o sofrimento e a dor desfiguram todas as relações e todo o entorno.
Por vezes se atrofia o sentir. E é tal a secura, que já não sabemos chorar, como há cidades que nem sabem o que é chuva. A doença não é um defeito que se deva reparar. É um estado, passageiro ou não, porém um estado que pode ser todo um mundo, um modo, uma forma de viver ou de desviver-se. E a cura e o cuidado requerem mão e coração humanos. Sem eles inexiste o milagre poderoso do conhecimento e seus efeitos.
Não é fácil viver com um enfermo e, menos ainda, quando se trata de nós mesmos. Lutar com a doença, compreender e ajudar os enfermos é também aprender com eles que nossa inusual saúde, que nossa saúde improvável, requer a capacidade de viver, harmoniosa e prazerosamente, com o equilíbrio agradecido de não estar enfermos. Inclusive de estar e, oxalá, ser sadios.
16 MAY 07 Tribuna
Copyright Clarín y La Vanguardia, 2007
Tradução Marcílio Dias dos Santos
Fonte: CLARÍN
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